Texto de 2011 para Coletivo Curare

Anteriormente, falamos sobre as medicinas tradicionais – chamadas medicina complementar e alternativa, ou prática complementar e integrativa, quando são aplicadas fora do seu contexto de origem. Pois bem, alguns dos campos da ciência que pretendem justamente estudar o conhecimento tradicional são a etnobotânica e a etnofarmacologia. A etnobotânica foca na relação dos grupos humanos com o reino vegetal. Já a etnofarmacologia busca conhecer e entender o uso dos recursos naturais utilizados por grupos humanos com finalidade especificamente medicinal. Estes recursos podem ser minerais e animais, além das plantas.

A principal ferramenta utilizada por estas disciplinas é o trabalho de campo, além da pesquisa em livros – obras produzidas por naturalistas que primeiro chegaram às Américas ou as farmacopéias clássicas das Medicinas Tradicionais Chinesa, Tibetana e Ayurveda, por exemplo. No campo, o método da etnografia é aplicado, na forma de entrevistas, observações e anotações em diário de campo. O objetivo é que o pesquisador conviva com os membros da comunidade, participando de celebrações, rituais e atividades cotidianas, e compreenda os aspectos culturais que envolvem as práticas medicinais. No caso das plantas medicinais, é necessário coletar amostras das indicadas pelos entrevistados, através de métodos da botânica, para que sejam identificadas por especialistas e depositadas em herbários. O mesmo processo de identificação é necessário para animais e minerais. Vale mencionar que antes do trabalho de campo começar, muitos termos e documentos legais devem ser providenciados pelo pesquisador, a começar com um documento atestando a concordância da comunidade em que o estudo se desenvolverá.

No trabalho de campo do mestrado! 2010, Rohtang, Índia.

Alguns pesquisadores também chamam de etnofarmacologia os estudos de química e farmacologia conduzidos a partir de informações provenientes dos estudos de campo ou da literatura, porém, no nosso entendimento, o termo se refere ao levantamento do conhecimento sobre os recursos naturais utilizados por grupos humanos com finalidade medicinal.

Há diversos exemplos da observação de campo etnofarmacológica que posteriormente desencadearam a produção de medicamentos: a dedaleira (Digitalis spp.), um importante cardiotônico; a papoula (Papaver somniferum), tendo derivados como a morfina, analgésico poderoso, e a heroína, substância de abuso; o quinino, anti-malária, que é derivado da quina (Cinchona spp.); o salgueiro-branco (Salix alba), analgésico e anti-reumático, que possui um derivado bastante conhecido, o ácido salicílico; o tabaco (Nicotiana tabacum) utilizado pelos nativos da América Latina, que foi levado à Europa e então a molécula ‘nicotina’ foi isolada; e o próprio curare, mistura de plantas como Chondodendron tomentosum e Strychnos spp., utilizado como anestésico.

Logo, a etnofarmacologia é uma grande ferramenta para sugerir ingredientes visando o desenvolvimento de medicamentos, além de trazer ao nosso conhecimento conceitos e práticas de culturas diferentes e incentivar, direta ou indiretamente, a conservação do meio-ambiente. Considerando a riqueza em biodiversidade e cultura do nosso país, estudos etnofarmacológicos poderiam e deveriam ser mais incentivados!

Referências:

Rodrigues E, Otsuka RD. Estratégias utilizadas para a seleção de plantas com potencial bioativo com ênfase nos métodos de etnobotânica e etnofarmacologia. In: Carlini EA e Mendes FR (Eds) Protocolos em Psicofarmacologia comportamental. Editora UNIFESP, São Paulo.

Gertsch J. How scientific is the science in ethnopharmacology? Historical perspectives and epistemological problems. Journal of Ethnopharmacology, 122: 177-183, 2009.