Texto de 2012 para Coletivo Curare

A planta Piper methysticum utilizada tradicionalmente nas Ilhas do Pacífico ‘para acalmar os nervos’, teve seu extrato comercializado e, posteriormente, banido no Ocidente.

Preparo da bebida kava em cerimônia polinésia

O nome ‘kava’ se refere tanto à planta (Piper methysticum) quanto à bebida que é feita a partir de sua fermentação e consumida nas ilhas da Oceania – principalmente Polinésia. Muitas lendas contam sobre a origem desta planta: na ilha de Samoa, por exemplo, diz-se que deuses desceram do céu para pescar e trouxeram com eles a raiz da kava, que cresceu de forma exuberante, junto com os utensílios de preparo da bebida divina.

Trata-se de um arbusto de 2–2,5 metros de altura que cresce a aproximadamente 200 metros acima do nível do mar e ocorre predominantemente na Polinésia ocidental. Por volta de quatro anos após o plantio, a raiz, parte utilizada no preparo da bebida, está madura para o consumo.

Entre os povos das Ilhas do Pacífico, motivos não faltam para utilizá-la. Destaca-se o uso cerimonial da kava, sendo utilizada em encontros de líderes, nascimentos, mortes e recepção de visitantes importantes – até a rainha do Reino Unido foi recebida com a bebida! Comumente é derramada em rituais mágico-religiosos, sendo oferecida aos deuses. Os principais usos medicinais da bebida kava revelam seus efeitos farmacológicos, hoje corroborados pela ciência, como ‘para acalmar os nervos’ e ‘induzir relaxamento e sono’. Outros usos tradicionais são para asma, reumatismo, resfriado e febre, como tônico estomáquico e diurético.

Piper methysticum

Pouco tempo após o consumo da bebida, sente-se redução da fadiga e alívio da ansiedade, adquirindo-se uma atitude alegre e sociável. Contudo, também há relatos de sensação de peso no corpo e cabeça, tontura, perda do tônus muscular e ‘feições demoníacas’. Estes efeitos farmacológicos diversos podem ser explicados pelo uso de diferentes variedades da planta; distinções nas condições climáticas e de cultivo (que podem induzir a expressão de substâncias diferentes nas plantas); e também no preparo da bebida (por exemplo, utilizando outras partes da planta que não somente a raiz), dentre outras possibilidades.

Os principais compostos da planta já identificados são alfapironas, como cavaína, metisticina, flavocavina e yangonina. Diversos estudos, em animais e humanos, sugerem alguns mecanismos de ação: bloqueio de canais de sódio e cálcio dependentes de voltagem, facilitação da ligação ao receptor GABA-A, inibição das enzimas MAO-B e COX, inibição da recaptação de noradrenalina.

No final da década de 90, houve um aumento do interesse de países ocidentais no consumo e comercialização dos extratos de kava como ansiolítico, movimentando 200 milhões de dólares em exportações provenientes das Ilhas do Pacífico no ano de 19981. Contudo, notificações de hepatotoxicidade foram relatadas na Alemanha e Suíça, culminando no banimento dos medicamentos baseados em extrato de kava na Europa e Estados Unidos. Houve uma grande reação por parte de membros tanto da comunidade científica quanto da indústria, argumentando que os casos de hepatotoxicidade estavam mal descritos – poderiam ter outras causas, ou mesmo diferentes preparações do extrato. Por outro lado, agências de saúde ressaltavam a fragilidade da eficácia demonstrada em estudos clínicos quanto ao efeito ansiolítico.

Esta polêmica quanto à eficácia e segurança do uso da planta kava como ansiolítico perdura até os dias de hoje, uma vez que diversas revisões e análises não chegam a uma conclusão definitiva. Este panorama nos mostra a importância de se traçar desenhos experimentais mais precisos e controlados, fundamentados na informações etnofarmacológicas, na formulação de medicamentos a base de plantas. Isto poderia reduzir as experiências precipitadas e negativas, além dos preconceitos, na elaboração de fitoterápicos.

Referências

1 Baker JD. Tradition and toxicity: Evidential cultures in the kava safety debate. Social Studies of Science, 41(3): 361–384, 2011.

Singh YN. Kava: an overview. Journal of Ethnophurmacology, 37: 13-45, 1992.