Texto de 2012 para Coletivo Curare

Em 1959, Sua Santidade O Dalai Lama, juntamente com cerca de 80.000 refugiados tibetanos, escaparam para a Índia em exílio político após a invasão chinesa no Tibete. A partir de então, Dharamsala, uma cidade localizada no norte da Índia, sedia a Administração Central Tibetana. No exílio, os tibetanos buscaram manter as peculiaridades da sua cultura, incluindo sua medicina tradicional. Assim, o Men-Tsee-Khang é uma instituição de ensino e prática da medicina tibetana, que foi em Dharamsala, na Índia, em 1961 pelo XIV Dalai Lama.

Realizei um estudo de etnofarmacologia, durante o mestrado, viabilizado por um convênio de intercâmbio didático, científico e tecnológico entre a UNIFESP e o Men-Tsee-Khang (Tibetan Medical and Astrological Institute). Registramos as fórmulas medicinais utilizadas na medicina tibetana praticada no Men-Tsee-Khang para os transtornos de humor e do sistema nervoso, correlacionando seus ingredientes com estudos da literatura científica quanto à ação farmacológica. Um artigo sobre este trabalho foi publicado.

O trabalho de campo, em Dharamsala, Índia, foi realizado entre junho de 2010 e fevereiro de 2011, pelo CEE/UNIFESP, e teve como entrevistados médicos do Men-Tsse-Khang reconhecidos como possuidores de grande experiência e tradição no uso das plantas medicinais.

Durante os primeiros cinco anos de formação médica, os futuros médicos tibetanos devem decorar os textos clássicos, além dos treinos das técnicas diagnósticas; acompanhamento de pacientes; e estudo de identificação e coleta dos ingredientes medicinais. Tradicionalmente, o ensino envolve a medicina e a astrologia tibetanas, sem incluir a biomedicina.

Conforme explicação dos entrevistados, a medicina tibetana entende a fisiologia a partir de um princípio humoral, que em última análise reduz as condições a quente ou frio. Os três humores, rLung, mKhris-pa, e Bad-kan, estão contidos no corpo humano e coordenam o funcionamento dos órgãos e sistemas. Os entrevistados explicaram que estes humores, ou energias estão, normalmente, equilibrados no corpo humano e que o desequilíbrio destas energias provoca doença.

A teoria física de surgimento das doenças relaciona-se às chamadas causas secundárias, ou imediatas, que são: dieta; comportamento (físico, mental); local (condições climáticas, condições sociais); e espíritos. Já o diagnóstico é feito através da observação, palpação e interrogação. Os exames físicos de pulso e urina são extremamente importantes. A principal informação sobre a doença – se é de natureza quente ou fria – é percebida pelo pulso e urina, então o tratamento mais adequado será definido. Da mesma forma, o tratamento possui quatro abordagens: 1) dieta alimentar; 2) comportamento; 3) medicamentos; 4) terapias acessórias. Estas indicações serão feitas conforme o humor em desequilíbrio, de modo que as qualidades dos alimentos e comportamentos lhes sejam opostas.

Árvore da fisiologia, na Medicina Tibetana

Na indicação de uma fórmula medicinal, devem ser considerados a idade do paciente, o estágio de desenvolvimento da enfermidade, se é um quadro crônico ou agudo, além de co-morbidades. Um mesmo remédio não será indicado para todos os casos de uma determinada doença, uma vez que, conforme os entrevistados, a medicação considera aquele indivíduo (sua constituição e o desequilíbrio) e não a enfermidade por ele apresentada.

O estudo focou nas fórmulas medicinais utilizadas para os transtornos neuropsiquiátricos. Na medicina tibetana, contam os entrevistados, a mente é composta pela consciência mais os cinco órgãos dos sentidos. Como todos os órgãos e sistemas, o funcionamento do SNC depende da ação dos três humores. Os entrevistados explicam que existe o estado normal da mente, no equilíbrio, e no desequilíbrio a mente torna-se perturbada. Tanto a mente agitada quanto a mente deprimida são reflexos do desequilíbrio de rLung, ou seja, quando rLung se desequilibra a atividade da mente será afetada, assim como outras funções no organismo relacionadas a este humor.  Para as doenças mentais não há medicação, mas sim para rLung.

“rLung é o cavalo e a mente é o cavaleiro. O cavaleiro, mente, deve conduzir. Se o cavalo é bravo, perturba o cavaleiro. Quando se utiliza medicação, é sempre para o cavalo – rLung.”

Doenças como mal de Parkinson, mal de Alzheimer e esclerose múltipla estão relacionadas ao desequilíbrio de rLung nos ‘canais vitais brancos’ (equivalentes ao sistema nervoso), e nestes casos, não se ministra apenas medicação, mas também as terapias acessórias, como moxabustão, banhos medicinais, agulhas, óleo nos pontos de rLung.

A medicina tibetana praticada pelo Men-Tsee-Khang, a partir dos textos clássicos, possui disponível em seu repertório mais de 2.000 ingredientes medicinais, distribuídos em centenas de fórmulas. O uso das substâncias medicinais ocorre sempre com multi-ingredientes, sendo o uso de um único ingrediente uma exceção. Este sinergismo, segundo os entrevistados, faz com que cada planta tenha sua ação “suavizada”, por isso a fórmula pode ser utilizada por um longo período e provoca menos efeitos colaterais, sendo indicada para um número maior de condições. Pílulas e em pó são as principais formas farmacêuticas utilizadas no Men-Tsee-Khang.

Dentre o universo de 170 fórmulas para tratar os mais diversos distúrbios produzidas no Men-Tsee-Khang em Dharamsala atualmente, a partir de 200 ingredientes, 10 fórmulas foram indicadas pelos quatro entrevistados para os transtornos neuropsiquiátricos, e estas possuem na sua composição entre 8 e 35 ingredientes em cada fórmula. Nove fórmulas indicadas no estudo são pílulas e uma é um incenso.

A partir da revisão na literatura científica, constatou-se que todas as fórmulas indicadas para os transtornos neuropsiquiátricos de fato possuem ingredientes com ação neuropsicoativa evidenciada por estudos farmacológicos. Ainda, muitos dos ingredientes com indicação para “desequilíbrio de rLung” não possuem estudos científicos referentes à neuropsicoatividade.

Entre as plantas medicinais contidas nas fórmulas indicadas, 41 possuíam estudos científicos de atividade biológica. Destas, 31 (75,6%) tiveram seus usos tibetanos coincidentes com atividades biológicas estudadas; e 24 (58,5%) possuem ação neuropsiquiátrica comprovada por estudos farmacológicos. Além disso, todas as dez fórmulas incluem ao menos um ingrediente cuja ação neuropsiquiátrica foi descrita na literatura científica.

Pode-se concluir que práticas médicas tão distintas, como a medicina tibetana e a medicina ocidental, são congruentes em relação ao uso de plantas medicinais, dada a alta concordância entre as indicações terapêuticas tibetanas e os estudos farmacológicos encontrados. No entanto, muitos dos ingredientes com indicação para “desordens de rLung” ou nos “canais vitais brancos” (tecido nervoso) não possuem estudos científicos referentes à neuropsicoatividade e podem ser potenciais terapêuticos. Tais estudos se justificam pela grande frequência de doenças mentais e seu impacto sobre a saúde pública, e os prejuízos que causam ao indivíduo.